quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Quarta Parte do Segundo Ato

'Jai guru Deva. Om.'

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De repente, uma enorme luz tomou conta de toda Alexandria e Amália e T começaram a brilhar. Ouviu-se a frase 'Jai guru Deva. Om' de um abismo sonoro que não se sabia origem. Talvez porque, mais uma vez, foi muita energia concentrada num canto só. A criatura, não se sabe como, começou a cair, inconsciente, enquanto via-se suas duas asas cortadas. O baque do corpo no chão foi grande, e Ana e Arnaldo só faziam observar, de longe. Os três sóis emergentes começaram a se extinguir lentamente, e o corpo do monstro havia virado pó. As nuvens haviam voltado ao normal, ea sensação de pavor que tomou conta do povo não existia mais. Amália olhou ao seu redor e reconheceu os nós que constituiam aquela pessoa, e era como se aquela presença a desse segurança, e T, assustado, só fazia sorrir, como quem não acreditava no que estava acontecendo.

- Até que enfim!; Amália deu seu melhor sorriso enquanto seus olhos lacrimejavam e seus braços se abriam numa corrida que terminou com um abraço e um giro.

- Hmm, hmm!; T também abraçou os dois, que pareciam se completar. Arnaldo, do outro lado, começou a apontar e pular euforicamente enquanto gritava repetidamente ''é Joakim, é Joakim! O irmão de Amália!''

Ana, tipicamente, franziu o cenho e perguntou:

- Mas todos os Filhos do Sol não são irmãos? Quer dizer, ele é um Filho do Sol, não?

- É sim, mas a ligação que eles têm é diferente. Contam os mais antigos que eles nasceram da mesma centelha de mágika.Antes da Guerra do Fogo, os dois eram um só. Foi o primeiro Palhaço que Deva fez, a quem chamou de Olivier. Olivier se sacrificou para salvar os outros Filhos do Sol na última grande guerra, confrontando Pied cara a cara. Por esse motivo, por serem metade de um todo, Deva dividiu as fraquezas e habilidades entre eles. Com um, a determinação, percepção e compreensão; com outro, a capacidade de cativar os outros, a presença que dá segurança, e o amor que falta no mundo. Por serem, ainda, metade de um todo, um ficou como homem, em tom de azul, e o outro como mulher, em tom de rosa.

Ana só fazia ouvir, apreensiva, enquanto observava o encontro das duas metades, dos únicos Filhos do Sol que, realmente, eram irmãos de mágika.

- Ah, que saudades!; Joakim abraçou os dois e, ainda no abraço, começou a pular e entoar um 'hei! hei! hei!'.

- Nem me fale; Amália apertou o abraço com um sorriso iluminado.

Do outro lado dos escombros, Ana e Arnaldo vinham correndo, e os três Filhos do Sol olharam quase que igual para eles.

- É ela?; perguntou o recém-chegado.

- É sim, Kim, é ela mesma; Amália respondeu com um ar mais pesado.

- Então, chegue cá, chegue!; e abriu os braços e se abaixu com um sorriso para acolher a menina. Ah, que bom te conhecer!

- É bom conhecer você também, seu Joakim!; Olhou pra cima e sorriu. Joakim bateu o olho em Arnaldo e o pegou nos braços jogando-o para cima e gritando 'Arnaaaaaaldooooo!'

- Me laaaarga, me laaaarga!; gritava o palhaço em miniatura enquanto Ana, T e Amália caíam na gargalhada.

- Bom, vamos comer? Tô morrendo de fome!; e saiu com Arnaldo nos braços, ainda pedindo para descer. Com a luz que emanava dos três juntos, as casas se reconstruíram e as vidas perdidas retornaram.

*

Era noite quando os três ainda conversavam, relembrando os velhos tempos. Foi quando Ana e Arnaldo estavam dormindo.

- Então, como está tudo até agora, Amália?; Joakim juntou as mãos e fitou o olho de Amália. Aquele verde se completa.

- A situação está difícil, Kim. A cada dia que passa sinto que a menina continua crescendo, bem como a vontade de Pied. Ele se torna mais forte com o tempo, e como isso acontece eu não sei. Tentei fazer uma varredura telepática na área de Alexandria, mas não encontrei nada. T também tentou sentir alguma energia negativa, mas a única coisa que conseguiu foi o pó do dragão negro que a Terra das Sombras havia mandado. Não foi, T?

- Uhum; até o palhaço que não falava estava querendo gritar, sabia que alguma coisa estava errada. Ele remeteu então a exatos mil anos atrás, quando Sadhi finalmente tinha chegado em Alexandria, e os Sete estavam à espera dele. Alexandria teve de ser reconstruída depois dessa guerra.

- Então, eu sugiro que temos de ir à Brobdingnag*; Joakim se levantou e foi à janela, observar as estrelas.

- Mas o que vamos fazer no país dos gigantes?; Amália arregalou os olhos e se levantou com uma cara de interrogação e susto. T ficou sentado mas olhou pra Joakim como quem vê algo desconhecido, surpreso.

- Dizem que Deva enterrou Sadhi lá.

- Sim, isso eu sei, Joakim, mas o que, pelo amor dos anjos, você quer ir fazer lá?; Amália agora estava irritada.

- Vamos ressucitar Sadhi.

-

Nota: Brobdingnag é o nome do País dos Gigantes do livro 'Os Bruzundangas', de Lima Barreto. No Mundo, fica perto do pólo ártico, sendo, portanto, extremamente frio. Deva enterrou Sadhi lá porque o frio dos ventos que lá sopram é o mesmo desde a criação, sendo, portanto, mágiko. O país é rústico e antigo em todos os termos, pois não há comércio e os gigantes [que têm entre 8 e 12 metros de altura] vivem da caça e habitam as cavernas.
Foi o último continente a ser estudado pelos estudiosos da Geografia sendo, portanto, menos o conhecido.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Dentro do Interior

Ela acha que eu não a acompanho. Pego o suco, fecho a geladeira e volto pro meu quarto, silencioso em sua pequena imensidão. Meu violão olha pra mim enquanto como algum pedaço de coisa de mais cedo, o pego e, dele, saem alguns acordes de notas de músicas de bandas que choraram que gemeram que perderam o freio. Ponto! Bah, que ponto que nada! A vida é uma trepada, a vida é uma furada! A vida é azul e o momento é cor-de-laranja. Amor, sorte, rancor, morte, vida, vestir uma bula, que porcaria toda é essa? Meu violão, agora ao fundo, me olhava torto. Em que você pensa? Em que você pensa?

Pensei em me jogar,
pensei em te trazer,
em te falar sem te dizer.

Pensei numa árvore,
num encarte,
numa carta e num desastre.

Eu penso que mundo precisa de revelaçããããão!
Que toda essa porcaria que persegue a gente é estranha, que se apaixonar demais é coisa ruim, que amar demais é coisa ruim.
E mesmo assim, ela acha que eu não a acompanho.
Se um olhar me denuncia e se um frio me bate a espinha, se até aquela química que acontece fosse imaginária. E mesmo assim ela acha que eu não a acompanho.
Bah, é só um anjo com asas e pés de chumbo! Que ligação eu tenho com ela agora?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Terceira Parte do Segundo Ato

'A vida ocupou todo o espaço e se fez paz.'

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Quando Ana acordou, já estava em sua cama. Apenas Arnaldo do seu lado.

- Arnaldo, cadê Amália?; ela perguntou assustada. Era como se a distância daquele sorriso a sufocasse.
- Não sei, Donana, saiu com o Filho do Sol!

Ana olhou com a maior cara de assustada que poderia fazer naquele momento:

- Filho do Sol?! Como assim? Cadê eles? Você os viu saindo? Pra onde eles foram? Como eles foram? Quando eles...

- Calma, calma, calma, Donaninha! Ela disse que eu não me preocupasse que ela logo, logo voltaria.

- Mas ela encontrou outro Filho do Sol! E eu não lembro de ter adormecido! Como viemos parar aqui?

- Eu acho que foi porque eles dois se encontraram. A mágika liberada num local só deve ter sido muito forte e quem não tem uma boa resistência a isso desmaiou. Acho que foi isso; e ficou pensativo.

- Bah, vamos esperar eles e comer, então!

Passaram cerca de duas horas esperando e nada, até que, sem querer, o clima para o frágil corpo de Ana ficou mais quente. Eles entraram sorrindo pela porta.

- Bah, mas tudo vai ficar bem, sim! É só ter fé!; Ana ouviu Amália dizer enquanto entrava.
Meu amor, desculpa ter te deixado aqui, mas achei melhor você descansar e deixei Arnaldo cuidando de ti!

- Nada, nada! Como é o nome dele? Ele veio da onde? Ele é teu irmão? Sim, ele é teu irmão!; Ana tagarelava mais que pinto quando nasce, e a euforia dela era de dar gargalhadas em qualquer um. Até Arnaldo começou a rir.

- É meu irmão sim, Ana! O nome dele mesmo é 'êÊÊÊêê', mas pode chamar de 'T'.

- Porque 'T'?

- Nem eu sei; e deu um sorriso bem costumeiro.

- Enfim, ele veio pra ajudar a gente. Queria que vocês se sentassem, precisamos conversar.

Ana olhou para Arnaldo meio apreensiva, mas obedeceu.

- Ele não fala, então, vocês vão ter de exercitar um pouco a paciência, certo? Outra coisa, a partir de agora, possa ser que a nossa jornada se torne mais difícil. As Terras das Sombras já sabem que estamos pretendendo reunir novamente os Filhos do Sol, e não estão nada satisfeitas com isso. Pied*, o Palhaço Escuro, estava na batalha do Fogo. Ele era um dos braços direitos de Sadhi. Quando este foi derrotado, Pied rumou para a Terra das Sombras e conquistou-a para si. Desde então, ele tem sido nosso maior inimigo até agora. Ele que mandou aqueles Pesadelos para a Floresta da Lembrança para atacar vocês, e ele que tá fazendo com que a Floresta morra. E é isso que eu quero descobrir.

Ana e Arnaldo ouviam abismados, enquanto T observava os dois, meio que os analisando.

- Mas o que ele ganha com tudo isso, Amália?; perguntou Arnaldo, meio confuso.

- Também não sei, Arnaldo. Eu acho que ele quer fazer tudo isso pra tomar o Mundo pra si que nem Sadhi estava disposto a fazer. A única diferença é que Sadhi estava à beira da loucura, Pied sabe muito bem o que está tentando fazer. E é muito incrível como um dia é diferente do outro. Só que é preciso ter visão pra perceber isso tudo . E a visão que eu falo não é aquela proveniente dos olhos, mas a que vem de dentro, a que é sentida. Só espero que essas mudanças não sejam percebidas por muitas pessoas logo, porque o que Pied tá tentando fazer é muito drástico.

- Então o que a gente tá esperando? Vamos embora caçar esse cara!; Arnaldo deu um pulo como quem quer ser um super-herói.

- Ah, se fosse assim! Ele é perigoso, e na arena dele a gente sai perdendo. Pelo menos por enquanto.

De repente, a luz que vinha da janela sumiu. Ouviram-se gritos das pessoas que estavam lá fora, e um rugido de uma besta foi sentido pelas paredes. Amália e T foram ver o que estava acontecendo daquele vidro empoeirado. Então, aquele dragão vermelho soltando fogo negro foi visto. Suas asas eram tão grandes que cobriam grande parte do céu da cidade. Seu rugido, o mais estremecedor.

- T, eles precisam da gente!; Amália colocou sua capa e saiu correndo pela porta. Vocês dois ficam aqui!

Saíram correndo para fora.

- Que os Filhos do Sol Apareçam!; a criatura exalava enxofre pelas narinas.

Dois sóis apareceram no céu imediatamente. A besta ficou abalada, mas logo rogou seu sopro de fogo sobre os dois. Um escudo de flores os protegeu enquanto eles tentavam avançar.
Amália tentava proteger não só ela, mas as outras pessoas também. Foi quando o dragão levantou sua pata mais alto que a estátua do Sol, e desferiu um golpe sobre a terra que fez o chão tremer. Prédios foram caindo, e pessoas perecendo. Ouviam-se mais gritos e sentia-se mais terror. Os dois não seriam páreos pro monstro?

- Droga, precisamos de ajuda!; Amália agora cobria sua cabeça com os braços tentando se proteger dos escombros enquanto a besta agora aterrisava na terra.

- Hmm; murmurou T.

Uma aura negra começou a sair da criatura, e plantas e árvores começaram a morrer. Tudo parecia estar perdido quando, no alto do céu, pôde-se ver mais um Sol nascendo, e ouviram-se o barulho de algo como guizos vindo de toda a parte. Amália parou, estática, quando ouviu aquilo. Era como se, de alguma forma, fosse ficando mais e mais forte. Foi então que todos puderam vê-lo. Usava um chapéu rosa com uma fita vermelha. Uma calça azul-escura folgada fazia contraste com suas luvas pretas semi-cortadas e, delas, saiam guizos. Seu colete por cima de sua camiseta azul-céu tinha um coração do lado esquerdo do peito, e algo tipo um jogo da velha do lado direito. Dele também saíam guizos. Um grande sol amarelo enfeitava suas costas e seus olhos eram verdes, verde-esperança.

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Nota:

*Pied [leia 'Pié'] foi, como Amália disse, o braço direito de Sadhi durante a Guerra do Fogo. Ele se revoltou contra o Mundo porque viu seu mestre sendo morto 'injustamente'.
Em breve, mais informações.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Segunda Parte do Segundo Ato

'Nessa rua, nessa rua tem um bosque que se chama, que se chama solidão.
Dentro dele, dentro dele mora um anjo que roubou, que roubou meu coração.'

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- O que será que tem nesse Teatro Mágico?; perguntou Amália, levantando a sobrancelha.
- Bah, só vamos saber vendo, não é mesmo?; respondeu Ana, com uma curiosidade nos olhos.
- É verdade, mas, antes disso, precisamos conseguir uma estalagem para ficarmos durante o tempo que formos passar por aqui, precisamos comprar roupas novas porque essas estão um desastre e, além de tudo, precisamos começar a procurar por seu pai.
- É mesmo, Donana! A gente num pode perder tempo não!; falou Arnaldo enquanto a olhava de baixo para cima.
- Tá bom, tá bom, já calei.

Foram, então, adentrando mais a cidade.

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Sobre o Mundo [3]

Alexandria, pelo que eles viam, era uma cidade realmente grande. Com cerca de dois milhões de habitantes, merece o nome de 'capital do Mundo'. O comércio é baseado numa forma mais capitalista de ser, onde a moeda local, o Dracma, compra quase tudo o que se pode vender.
As ruas são algumas estreitas, outras mais largas, basicamente como a Paris do Imperador Napoleão III, que transformou a capital francesa numa obra de arte arquitetônica. Com prefeitura fixa, porém sem um governante, de fato, a cidade sobrevive da exportação de madeira e de escolas de mágika. Algumas lojas mais famosas, que vendem aparatos mágicos, movimentam, também, uma enorme quantia de dinheiro. Os bares e tavernas só abrem à noite, e são o ponto de encontro de aventureiros, guerreiros, viajantes e bardos, que passam a noite cantando ou contando estórias para ganhar algum trocado. A cidade é cercada por uma pequena floresta que, por não ter uma importância muito grande para as pessoas da região, recebeu o nome de Floresta Sem-Importância. A oeste, temos o Mar.
Contam os bardos e trovadores que, em algum momento do início da criação, um grande mago soergueu grande parte de Alexandria e a enfeitiçou de forma a ficar flutuando pelo Mundo. Essa cratera de aproximadamente 90 quilômetros de diâmetro é onde hoje funcionam as minas de uma raça conhecida como Anões.

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- Olha gente, olha!; ressaltou Ana, apontando para alguns balões que um humando vestido de palhaço estava desfilando na rua. Amália só deu um costumeiro sorriso, enquanto Arnaldo olhava admirado, como uma criança que acaba de ganhar um pacote de algodão doce.
- Liiindo! Eu quero um desses pra mim!; Arnaldo apontou pra um balão vermelho, que parecia seu nariz.

Ana remontou ao passado.

'- Papai, papai! Eu quero um daqueles!

O pai dela olhou para aquele Palhaço mágico vendedor de balões. Era costumeira sua presença ali, e ele era um dos poucos Palhaços que se relacionavam com os humanos sem ter medo ou receio pois, naquela época, Palhaços e humanos viviam em guerra para ver quem governaria Alexandria.

- Ah, minha filha, agora não tenho dinheiro, mas assim que o tiver eu compro um pra você, tá certo?

Ana ficou cabisbaixa e murmurou um 'Tá certo, papai'. Ela devia ter uns 6 anos na época.
As coisas estavam difíceis. Tentar conseguir emprego era cada vez mais constrangedor, pois a escassez do dinheiro estava enorme. As pessoas estavam, literalmente, matando pra conseguir um pouco de comida ou alimento, porque as florestas estavam todas contaminadas com uma praga que até hoje não se sabe o que foi. Alguns dizem que foi castigo de Deva pela ambição dos Palhaços e dos humanos pela cidade, outros dizem que foi simplesmente um 'mal entendido' com a Natureza.
Continuaram andando, era dia de receber o dinheiro ofertado pelo governo. Ana odiava a idéia de receber algo como uma esmola, mas era o jeito.
A fila daquele dia estava enorme, cada um com seu papel-recibo para comprovar o recebimento da oferta. Ela lembra, pelo seu marca-tempo, que passaram mais de duas voltas no aparato [o equivalente a duas horas no mundo real], e eles ainda estavam lá.
Foi então que começou uma confusão na fila mais da frente porque uma das pessoas queria furar a fila. Pelo menos foi isso que ela pôde entender do que aconteceu. Ouviu um deles gritar 'você pensa que só porque tá com essa putinha do seu lado você tem o direito de furar a fila?'. A 'putinha' era provavelmente a filha adotiva daquele senhor de aproximadamente 70 anos de idade, todo mal lavado, sujo e aparentemente faminto. Os olhos de Ana ficaram lacrimejados com aquilo. Foi então que, num piscar de olhos, lá ia seu pai tomar satisfação com aquele monstro gordo que havia ofendido o velho. Ele ficou imaginando se fosse com a filha dele aquele insulto.

- Quem você pensa que é, rapaz, pra tratar esse senhor assim?
- Sou dois de você, seu sarnento! - e desferiu um soco na boca do pai de Ana. Ela correu chorando para ajudá-lo mas ele, com um grito e um gesto, disse que ela se afastasse.
Nesse dia, ela lembra que foi com o pai para o hospital porque a guarda demorou a chegar.
Seu pai passou cerca de dois dias de cama. Não recebeu dinheiro nessa temporada, e eles, mais uma vez, passaram o mês se alimentando com pétalas e néctar. Mas, com o único trocado que ele tinha quando saiu do hospital, ele comprou um balão vermelho para a filha.'

- Algum problema, Donana?
- Não, Arnaldo, nenhum - replicou a menina balançando a cabeça como quem sai de um transe.
- Então, podemos ir, não? - quando Ana viu, Arnaldo já estava com o balão vermelho em mãos, e ele e Amália estavam um pouco mais à frente meio que esperando-a para continuar a caminhar.

Caminharam um certo tempo, compraram suas roupas e comeram.Acharam uma estalagem barata e confortável, tudo pago por Amália. Era cerca de meio dia quando tomaram um banho de verdade e vestiram suas roupas novas.

- A comida está tão boa! - disse Arnaldo em meio ao almoço, colocando uma colher atrás da outra sem mastigar direito.
- Está, sim, Arnaldo, mas vá com calma se não você vai terminar por colocar tudo isso pra fora!

O carinho que Amália tinha por aqueles dois era carinho de mãe mesmo. Sempre se preocupando.

- E Donana, vai comer não?
- Ah, agora não, não estou com tanta fome assim - disse Ana, remexendo os legumes no prato. Posso me retirar agora?
- Claro, à vontade; Amália respondeu ainda com um sorriso no rosto.

*

Passaram a tarde tirando uma cesta. Há três dias não dormiam direito. Quando se levantaram, já era tardezinha, quase noite. Ana foi a primeira a se preparar para ver o Teatro Mágico no bar mais comentado da cidade, A Taverna.
Andaram pela cidade, que ganhava outra cara à noite. Parecia que a tampa de todos os boeiros eram abertas e que todos os bebuns existentes no mundo tomavam conta do espaço urbano.
De longe, já se via a fila pra entrar naquele cubículo, que tinha mesas de madeira mal talhada e um chão sujo, uma garçoente gorda e mal cheirosa e um minipalco para apresentações. O ambiente era, de fato, bem rústico, com não mais de 80 metros quadrados. No balcão, vinhos, cervejas e hidromel faziam parte do cardápio de bebidas, enquanto de comida, havia apenas algumas flores selvagens guizadas. Enfim, conseguiram um local pra sentar-se.

- O que vão querer? - perguntou a garçonete.
- Água e só, por favor - disse Amália.

Estava uma enorme gritaria, como se o mundo estivesse perto de acabar. Foi quando subiu no palco uma espécie de Palhaço-Bardo com um violão preto e anunciou:

- Senhooooras e senhoooores! Hoje, e somente hoje, a poesia prevalece!

Ana olhou com os olhos brilhando toda aquela mágica envolvendo o ar, enquanto um pinguim entrava no palco com uma sanfona e, do nada, saem uma boneca de pano e um Palhaço descendo de um trapézio que nem Amália viu de onde saiu.

Então, aquela trupe começou a realmente fazer um show, enquanto conseguia acalmar, de alguma forma, toda aquela angústia que repreendia Ana. Arnaldo olhava encantado, sem saber se aplaudia de pé ou se mantia o máximo de sua concentração naquela apresentação. Foi como se eles tivessem sido transportados pra outro mundo, onde só se viam flores e criaturas mágicas.
Então, Ana viu que Amália estava apreensiva. Olhando fixamente para um Palhaço.
Ele usava um chapéu jeans e uma camisa azul-branco listrada por cima de uma camiseta azul clara e uma calça vermelha bem coronha. Parecia um boneco com seus traços de maquiagem, e quando ele colocou os olhos sobre Amália, foi como se o tempo, naquele momento, parasse, e um calor enorme tomou conta de toda a sala.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Primeira Parte do Segundo Ato

'Entrada Para Raros.'

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- Sou eu, sou eu sim!; ela tentou levantar-se com algum esforço. Seu braço ainda estava meio dolorido, apesar da ferida ter se fechado.
- Pode ficar aí deitadinha, você acabou de passar por um momento um tanto adrenalínico!; disse Amália, esboçando um sorriso cor de aurora.
- Sim, mas o que vamos fazer agora? - perguntou Arnaldo, um tanto preocupado.
- Vamos para Alexandria, Arnaldo! Vamos pra melhor cidade do mundo!; Amália abriu ainda mais o sorriso enquanto Arnaldo demonstrava receio e alegria ao mesmo tempo.
- Algum problema, Arnaldo?
- Não, Amália, nenhum!

Ana ficou só ouvindo a conversa, de loooonge.
Se levantaram, e começaram a caminhar sendo guiados pela Montanha Gelada: Alexandria ficava cerca de dois dias de viagem a oeste delas.

E assim foi, dois dias de viagem. Às vezes eles paravam em alguma fonte ou rio, às vezes dormiam em algum bosque que encontravam pelo caminho. Amália contou a estória dos Filhos do Sol de como ela conhecia, de forma mais completa e coerente. Ana e Arnaldo só ouviam, em pleno silêncio. Contou também como surgiu o Mundo.

'No começo, havia apenas o Nada e o Limbo. Estes deram origem a um ser chamado Deva, que, por sua vez, em sua solidão eterna criou uma esfera de vida gigantesca, de forma a fazer companhia a ele mesmo. Porém, Deva se viu tão só, que das lágrimas que de seu rosto escorriam nasceram os rios e oceanos, e essas mesmas águas regaram a terra infértil do Vale Desconhecido, dando origem à todas as formas de vida e, consequentemente, à Floresta da Lembrança.
Para habitar essas formas de vida, Deva construiu com sua magia a cidade de Alexandria.
Alexandria foi considerada sua obra prima. Esculturas colossais e verdadeiras obras arquitetônicas encorporam todo o ar mágico da cidade.'

E o resto vocês já sabem!

Arnaldo parou e disse:

- Mais, mais, conta mais!
- Ah, amanhã eu conto, já tá na hora de dormir!; deu um sorriso e o cobriu com um cobertor improvisado de folha de cerejeira; Amanhã será um longo dia! - disse ela beijando-lhe a testa.
- Porque, Amália?; indagou Ana, que já estava tonta de sono.
- Chegaremos em Alexandria amanhã, esqueceu? Nada de comermos qualquer coisa que encontrarmos pela frente ou tomarmos banho nos escondendo de Arnaldo!; e deu início a uma gargalhada que logo foi contida.
- Ah, é verdade. Mas o que vamos fazer lá, exatamente?
- Vamos buscar ajuda; e continuou com aquele sorriso costumeiro em seu rosto.
- Podemos procurar meu pai? - um brilho diferente nasceu nos olhos dela, era o início de lágrimas. - Soube que ele foi levado pra lá mas não me deram mais nenhuma informação!
- Claro que podemos! Vamos achá-lo nem que tenhamos de rodar toda a cidade! Mas, para isso, a mocinha tem que dormir. Boa noite, meu anjo, até amanhã!; e beijou sua testa, também.

Pela primeira vez em muito tempo ela recostou sua cabeça estando com o pensamento leve. Não queria saber se o solo era de massapê ou se era um travesseiro de plumas: ela estava bem consigo mesma, apesar de tudo.

*

- Ana?; ela ouviu a voz lhe chamando ao longe; Ana, acorda, já amanheceu - tinha dormido tão bem que havia perdido a hora. Acha que sonhou com sua mãe. Acha.
- Vamos sim, Amália. Cadê Arnaldo?; olhou em volta e não viu o palhacinho.
- Pedi pra ele ir se lavar longe da gente.

Ana deu uma gargalhada que não dava há muito tempo. Realmente, essas pessoas lhe fazem um bem tão grande...

Assim que Arnaldo voltou do riacho eles seguiram caminho.
Não demorou muito até que se visse, de longe, a gigantesca estátua erguida em homenagem ao sol. Tinha um contorno de cobre com o interior dourado, enquanto os raios reais eram refletidos pela sua grandeza.

- Até que enfim, chegamos!; Amália abriu um sorriso gigantesco quando proferiu essas palavras.

A primeira coisa que Ana viu foi a estátua, é claro. Depois, viu aquela multidão passeando e fazendo compras, enquanto ouvia um bardo anunciar, em cima de um banco, aos berros:

- Só hoje, n'A Taverna, o maios espetáculo de todos os tempos!; e entregou, enquanto ela passava, um panfleto que Arnaldo e Amália se esticaram para ler. Nele, estava escrito as seguintes palavras:

'O Teatro Mágico: Entrada Para Raros'

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ana e o Mar - A Guerra do Fogo

Sobre o Mundo [2]

Sadhi foi um exímio guerreiro.
Cavalgou pelas Planícies Douradas de Godan por muito tempo, fazendo a guarda do Império da Areia. O comércio começou, então, a surgir no Mundo. Primeiro começaram a trocar conhecimento. Você ensinava alguma coisa considerada importante a alguém que quisesse aprender e, em troca, recebia ou algum tipo de mercadoria ou até mesmo outro tipo de conhecimento.
Havia um sábio que tinha compartilhado vários conhecimentos com os Dragões das Montanhas, seu nome era Ramuh.
Ramuh foi um dos primeiros seres pensantes a pisar no planeta e, graças aos seus conhecimentos e experiência, os humanos conseguiram desatar os nós que formam a realidade. Isso mesmo, toda a realidade é constituída por 'nós'. Palhaços e Dragões são duas das únicas raças que conseguem desatar e moldar esses nós a seu bel prazer, de forma que os leigos chamem essa habilidade de 'mágika'. A mágika é justamente essa capacidade; a capacidade de transmutar a realidade.
Sadhi foi o melhor discípulo que Ramuh pôde ter. Dedicado, inteligente e, acima de tudo, descendente direto da linhagem que Deva deixou; ou seja, tinha uma exímia aptidão para a mágika.
O tempo foi passando, até que Ramuh percebeu que o que poderia passar para Sadhi ele já havia passado. Sadhi, então, utilizou o que sabia para conquistar, de forma justa e sincera, o trono de imperador. Adotou Ramuh como seu conselheiro, uma vez que tudo que sabia devia, de certa forma, a ele.
Era incrível o status que ele havia conseguido!
Ah, todas aquelas mulheres, todos aqueles servos, todo aquele poder!
E, ainda por cima, todo aquele respeito!
Respeitado até pelos Magos Brancos do Gelo, e até mesmo pelos tão temidos Dragões das Montanhas!
Porém, Sadhi não estava satisfeito.
Não queria apenas ser respeitado, ou ter mil servos, ou deitar-se com a mulher que quisesse.
Ele queria mais, bem mais.
Queria o status de divindade, queria ser conhecido não como imperador, mas como um deus.
Achando injusto e desnecessário, Ramuh tentou intervir e Sadhi o assassinou cruelmente na frente de toda a corte.
Começava então uma era de treva e escuridão para o Continente do Fogo e, consequentemente, para o resto do mundo.
Sadhi enlouqueceu com uma morte.
Até então, as pessoas tinham morrido apenas de morte natural, tal pecado não havia sido cometido entre humanos.
A realidade ficou, então, abalada.
Sadhi agora estava amaldiçoado.
Nem um filho, nem um herdeiro, nem um descendente jamais teria paz em vida enquanto Sadhi vivesse!
Então ele procurou ajuda nas Terras das Sombras.
O terrível continente onde nenhum ser visitou e voltou inteiro.
As feiticeiras exigiram muito em troca.
'O peso de uma morte é grande, mas não irremovível' diziam elas.
Para isso, ele teria de oferecer metade de suas terras e a pessoa que mais amava na vida.
Matou também sua mãe, e começou a dizimar todo o continente em busca de mais terras para doar às Terras das Sombras.
Foi então que eles apareceram.
De repente, sete sóis surgiram nos céus, e uma luz diferente tomou conta de todo o mundo.
Sadhi viu sete seres descendo em cada ponto da terra, cada um carregando um Sol em suas mãos.
Viu, também, uma estrela lilás que brilhava ainda mais forte que os sete sóis juntos.
Deva estava pisando na terra de novo.
Batalharam Sadhi, os Filhos do Sol e Deva.
As Terras das Sombras enviaram esforços e reforços, e o estrago por isso foi imenso.
Civilizações destruídas, florestas dizimadas, e até mesmo Alexandria, fruto da mágika do próprio Deva teve de ser reconstruída.
Dessa batalha, conhecida como a Guerra do Fogo, restaram apenas lembranças e um único guerreiro, instruído por Deva a permanecer na terra por carregar consigo a esperança nos olhos. Esse guerreiro foi divido pela Natureza em duas partes. Uma, colocada no desconhecido, nascido da vontade de Deva. A outra, colocada nas Florestas, filhas do Tempo e da Natureza. Um dia, o mundo precisará deles de novo.
Essa é a estória da Guerra do Fogo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Última Parte do Primeiro Ato

'Então, ela viu que o céu era sem fim.'

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A Floresta estava úmida e densa. Podia-se ouvir ruídos de galhos sendo quebrados pela própria poeira, e era perceptível só com o coração, tão apertado, de que as árvores estavam pedindo socorro. Sussurros de vozes trazidas pelo vento, cheiros queimados pelo fogo, aquele fogo que incendeia mas não queima, aquele fogo que corrói mas não destrói.
Ana fechou a porta atrás de si, e era como, de novo, se a Floresta estivesse simplesmente morta, sem vida. Havia uma trilha que ela sempre seguia, mas agora está destruída.

- Arnaldo, qual o caminho mais seguro?; ele pára, olha pra ela e responde.
- Nas atuais circunstâncias, nem um caminho é seguro, Donana!; ela ficou meio apreensiva, olhou ao redor, e percebeu uma fresta de sol que descia pela copa das folhas dos gigantescos pinheiros e sequóias.
- É por ali!; e saiu com Arnaldo - agora no chão por conta do peso - em seu encalço.

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Do outro lado da Floresta, ela se preparava.
Pôs seu chapéu cor-de-rosa, sua camisa florida e aquela saia vermelho-marrom, de que tanto gostava. 'É daqui a pouco', pensou.
Passou seu batom, também vermelho, e olhou pra fora daquela janela de madeira bem polida, que tinha antes sido colocada na sala de visitas daquela sequóia-rúbea.
Fazia tempo que não era chamada. A última vez foi há mais de mil anos, quando aquele rei louco da areia decidiu querer dominar o mundo. Mas está feliz, acima de tudo. Vai rever seus irmãos em breve, tem certeza. A única que sabe, de fato, quem é e porque está ali é ela. Colocada pelo próprio Deva pra acordar os 'outros'. Ela coloca sua bolsa de flores, olha uma última vez pelo espelho, e sai. Alguém a espera.

-

Andaram cerca de uma hora, e ela percebia que ainda faltava muito pra chegar ao fim do caminho. Parou, então, para descansar.

- Arnaldo?; olhou para ele, encostado numa árvore.
- Oi, Donana!
- De onde você veio mesmo?
- Alexandria, a cidade dos Palhaços!; os olhos dele brilharam com aquela resposta.
- E lá é bom pra se viver?
- Ah, Donana, é bom sim! Só que o povo é muito materialista, sabe? - ficou meio pensativo com essa resposta - Assim, se importam muito com as aparências, com a beleza física das coisas, e se esquecem que, às vezes, a beleza real de uma pessoa está num gesto, num olhar, numa atitude. E isso me preocupa, porque eu já vi muitas pessoas perdendo outras por brincadeira, por terem falado algo ou cobiçado uma simples roupa numa daquelas lojas. A real essência das coisas é a alma, e é isso que eu acho.

Ana pára e o observa.

- Você tem irmãos, Arnaldo?
- Tenho sim, Donana, tenho sim!; se levantou de um pulo só e começou a gesticular no ar - Sou irmão dos 7 Palhaços que Deva fez! Ele me deixou aqui pra cuidar pra que o mundo não ficasse na mesmisse e pra que, quando fosse necessário, eu fosse atrás deles pra o mundo voltar a ser melhor! - ah, e abriu um sorriso gigantesco quando disse isso.

A menina duvidou que alguém pudesse ser tão sincero consigo mesmo, porque aquele brilho nos olhos era, sim, totalmente sincero.

- E a senhora, Donana, tem irmãos?
- Senhora não que eu não sou velha!
- Ah, tá, desculpa. - e se recolheu na árvore em que havia se sentado novamente e começou a comer.

- As pessoas se esquecem de que as outras também têm sentimentos.

Ana franziu o cenho e olhou para ele com uma cara interrogativa.

- É, é isso mesmo. Em Alexandria, o egoísmo das pessoas já superou tanto o amor que uma sente pela outra que agora é cada um por si, cada um falando mais alto que o outro, cada um que não respeite a opinião do outro. Os comerciantes aumentam os preços dia após dia, as famílias vão se desestruturando, os governantes são corruptos e roubam...

Suspira.

- Desculpa, não foi minha intenção te machucar; o abraçou forte, um abraço daqueles, que valem um 'eu gosto muito de você, seu cabra!'.

Então, ouviram um estalo de galhos.
Ana se levantou e tirou logo sua capa invisível enquanto Arnaldo apontava sua mão pra todos os lados, como se estivesse preparando a ação pra alguma coisa.
Olhos vermelhos de monte começaram a aparecer na penumbra por detrás das árvores. Um odor de enxofre novamente foi sentido. Não esperou mais nada, colocou Arnaldo nos braços e correu sem rumo.

- Me solta, me solta, me solta que eu acabo com eles!
- Deeeeixa de falar besteira, são muitos!; adrenalina à mil, Ana começou a entrar em cada buraco que nunca havia entrado, enquanto sua respiração começava a ofegar. Até que uma das criaturas pulou em cima dela!
Aqueles olhos entravam na alma de quem os olhasse. Eram vermelhos como o fogo, e aquela mandíbula tentando arrancar algum pedaço de carne agora doía entre seus braços.
Foi aí que uma luz forte foi vista e ela sentiu não só a criatura que a encurralva, mas todas as outras sumindo frente à luminosidade. Desmaiou.

*

O cheiro de rosas era perceptível, estava meio cansada, e sentia alguém segurando seu braço. Ouviu a voz de Arnaldo:

- Ela está acordando!

Quando abriu os olhos, viu aquela Palhaça com o chapéu rosa segurando seu braço que, agora, estava se regenerando. Estava num vasto campo, e a copa das árvores da Floresta da Lembrança podiam ser vistas a longe. Ouviu a Palhaça dizer:

- Sou Amália, moça bonita, e você deve ser Ana!

Percebeu, antes de mais nada, um Sol dourado pintado em seu rosto, e um cordão com o mesmo sinal em seu pescoço. Então, ela olhou nos olhos de quem a ajudava, e eles tinham a cor da esperança.

Fim do Primeiro Ato

domingo, 19 de outubro de 2008

Preocupação

Ah, e ela esquece do mundo!
Entra em transe, mas tão, tão profundo,
que só pensa na mesma coisa, todo o tempo,
em todos os segundos.

Alguns acham ridículo,
outros acrilírico,
eu acho, eu acho que
é muito por tão pouco!

É uma alegria sem fim
quando com ele ela está,
mas esquece de tudo, do mundo,
de mim.
De todos os 'mim'.

Esquece de olhar o espelho,
esquece de tocar o som,
aquele som.

Mas, quando chega ao fim,
corre e se escorre.
Fica sem chão, rumo
ou direção.

E, agora, não sei.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Terceira Parte do Primeiro Ato

"Virá um tempo em que as vozes do solo e das plantas cantarão apenas lamentos."

-

Seu pai estava imóvel na cama quando ela entrou.
Sentiu um arrepio, uma tontura, e desmaiou.
Quando acordou, viu um Palhaço ao seu lado.
Tinha o cabelo azul, era pequeno e branco como uma nuvem.
Sua voz soou meio tímida e compacta devido, provavelmente, ao tamanho do seu corpo.

- Arnaldo, prazer.

Ana se levantou em um pulo rápido e girou a cabeça tentando encontrar alguma coisa, mas a cama ao seu lado estava vazia e as pessoas estranhas tinham ido embora. Só restou aquela criaturinha em miniatura, olhando fixamente nos seus olhos, com um sorriso inabalável.

- Quer café?
- Não obrigada. Onde está meu pai?
- Foi levado pra Alexandria.
- Como assim 'levado pra Alexandria'? - e levantou-se da cama soerguendo o corpo num único baque;
- Foi o que me disseram. Ele que me deixou aqui pra cuidar de você. - Arnaldo a encarava de baixo pra cima, numa posição pateticamente inferior, mas seu olhar era fixo e determinado;
- E de onde você é, Arnaldo? - um tom de deboche foi percebido;
- Sou um Filho do Sol!

Ana caiu na risada.
Não pôde deixar de caçoar daquela piada.

- E eu sou Deva, o pai de todos os palhaços! - disse ela o encarando com aqueles olhos azul-madre-pérola; vou procurar meu pai, é o melhor que eu faço.

Saiu então em direção à porta.
Baque.
Quando abriu a porta, sentiu como se todas as bestas do mundo inferior estivessem rondando a Floresta da Lembrança. Um odor de enxofre percorreu suas narinas, enquanto um calor imenso tomou conta da sua casa que, com certeza, estava protegida de tudo aquilo por magia.
As árvores estavam morrendo.
O solo estava morrendo.
Os animais estavam morrendo.
O mundo estava morrendo.
Parecia que, em apenas 12 horas, o mundo tinha virado de cabeça pra baixo: seu pai doente, a Floresta perecendo, um palhaço que mais parecia um gnomo lhe fazendo companhia, e só ela pra cuidar de tudo isso.
Fechou a porta.

- Arnaldo, Arnaldo! - se abraçou com ele o mais rápido que pôde: apesar de desconhecido, era sua única companhia; quero sair daqui, quero meu pai! quero minha Floresta de volta!

- Calma, moça, calma! Calma que tudo se resolve!

Começou a chorar num pranto sem fim.
Mas estava decidida.
Iria atrás dos Filhos do Sol!
Lenda ou não, seria sua última chance.
Uma Floresta dizimada, seu pai doente, o mundo se acabando.
'O que está acontecendo?', pensou.
Seu pai lhe disse, uma vez, que os Filhos do Sol já tinham sido reunidos há muito tempo, quando o grande imperador do deserto, Sadhi*, ficou louco pelo poder e começou a destruir todas as vilas do Continente do Fogo para ter mais terras e escravos.
Da sua batalha com os Filhos do Sol, só restou seu túmulo, bem no meio do deserto que recebeu seu nome, o Deserto de Sadhi.

Colocou sua capa invisível, um pouco de pó-de-grifo, algumas maçãs e rosas comestíveis, colocou Arnaldo no braço, e se foi.
Sem rumo, ou direção.
Ou melhor, ela seguia o Sol.

-

Nota:

* Sadhi foi o maior imperador que o mundo já viu. Governou as areias do deserto por quase um século, mas ficou louco pelo poder. Os Filhos do Sol tiveram de intervir em seus planos, pois o mundo estava se acabando. Foi a primeira e única vez que foram vistos sete sóis brilhando no céu.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sorriso

Te ver de repente é bom demais,
é mais inocente que ser bom rapaz,
eu me sinto em Pasárgada,
me sinto em casa.

Abraçar você é melhor
do que tudo que eu possa dizer,
é um não querer mais que bem querer,
é ficar contente sem saber da dor que a gente sente.

É me pintar de palhaço
pra sentir o calor do teu abraço.
É te esperar toda noite
com os olhos fechados.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Segunda Parte do Primeiro Ato

Estando no lago, era como se o som do vento batendo nas águas fosse igual ao cheiro da brisa que entrava pelo seu nariz, e o céu azul parecia mais azul que o normal, com os golfinhos voadores acima de sua cabeça, ela começou a compor.

"Queria eu ver as laranjeiras sorrirem,
queria eu não ter mais de sofrer por elas,
queria eu ver A Floresta Da Lembrança nova,
queria ver o mundo como ele já foi um dia."

A Floresta em que Ana morava estava se perdendo, com a lembrança e o sentimento de cada ser vivente naquela terra, pois tudo agora era triste e infeliz, porque, de alguma forma, o material estava superando o que havia de mágic naquele mundo, de modo que as pessoas se preocupavam mais em ter uma roupa cara do que ter uma alma rara.
Passou todo o resto da manhã no lago, voltando para casa ao meio dia.
Chegando lá, havia algo de estranho, muitos animais e palhaços* haviam cercado a árvore do seu pai**, enquanto um esquilo veio à ela e disse:

'Caiu'.

-

Nota:

* Os Palhaços do mundo de Ana e o Mar devem ser vistos como uma raça diferente da humana, da mesma forma que os elfos de J.R.R. Tolkien, e não como pessoas normais.
São criaturas dotadas de magia e especiais em muitas coisas. Em breve mais informações.

** Na Floresta da Lembrança, cada ser do mundo tem uma árvore que tem as características do interior de seu respectivo 'dono'. Por exemplo: se a pessoa estiver triste, a árvore amanhecerá com as folhas murchas, se ela estiver cansada, a árvore vai aparentar estar balançando pra cair etc.

-

Sobre o Mundo [1]:

No início, Deva, O Primeiro Palhaço, havia usado a magia que tinha para criar Alexandria.
A cidade prosperou, mas Deva ainda não estava satisfeito. Não tinha conseguido, de fato, achar o que tanto queria e esperava. Então ele criou outros 7 Palhaços, a quem chamou de Filhos do Sol. Os desproviu de memórias, pois não podiam lembrar quem realmente eram e, com cada um desses Palhaços, ele deixou um pouquinho de sua magia, pra que, quando estivessem por algum motivo juntos, algo pudesse ser criado, pra transformar de novo o mundo no que algum dia ele já foi.


terça-feira, 7 de outubro de 2008

Chuva

Tinha esperado por um bom tempo.
Beijou molhado, com a água escorrendo pelas suas costas.
E as mãos dela o abraçando, e seus olhos nos dela, e aquela síntese de todos os momentos bons que ele já viveu misturados num único brilho de olho.
Foi seu primeiro beijo na chuva.

domingo, 5 de outubro de 2008

Faca

Ele ia se operar naquele dia.
Tinha medo de deixar as pessoas pra trás pois, apesar de ser uma pessoa muito fresca, a cirurgia tinha em si um certo risco.
Pensava na mãe, no pai, nos irmãos, mas a namorada, a amiga, a companheira era quem mais vinha à cabeça.

- Eu volto, pode me esperar.

Disse ele a ela antes de viajar - a cirurgia seria feita em outra cidade.
Foi então, sem medo, apenas ansioso.
O quarto era branco, tinha apenas um banheiro. Com ele, sua mãe e sua tia.
Colocou um avental branco e uma cueca que tinha de ser 100% algodão e esperou a cadeira de rodas que o vinha buscar.

- Bom dia, com licença.

A enfermeira entrou e pediu pra que ele se acomodasse no assento.

- Tchau mãe, tchau tia, amo vocês.

O corredor estava vazio, e havia alguns gritos e gemidos de dor ao passar pela enfermaria.
O elevador de serviço era grande o suficiente pra carregar duas macas com pessoas e seus respectivos acompanhantes.

A sala em que ele ficou esperando o médico estava escura e solitária.
Passados três minutos, chegou outra pessoa para buscá-lo.
Chegou na sala, começaram a ser colocados eletrodos em seu busto e pulsos.
Uma agulha de suporte foi levemente injetada na veia da mão esquerda, enquanto uma touca foi colcoada na cabeça. As únicas palavras que ele lembra antes de apagar foram da anestesista.

- Não se preocupe, estamos aqui pra fazer o melhor por você.

Acordou com alguém mexendo nele.

- Ele tá acordando.
- Venha pra maca.

E fez um leve esforço pra mudar de leito.
Sua tia que é enfermeira acompanhou toda a cirurgia.
Apertou a mão dele e disse:

- Você foi ótimo, ocorreu tudo bem.

Chegou no apartamento meio dopado ainda, e recebeu dois beijos e felicidade.
Conseguia falar sem sentir dor.

- Ela ligou, mãe?
- Umas dez vezes.

E sorriu.

- Quer ligar pra ela?
- Quero sim!

...

- Ele já saiu, pediu pra ligar pra você.
- Oi.
- Tô vivo!

Ele ouviu risos do outro lado da linha.

- Deu tudo certo mesmo?

A voz dela tinha um tom de felicidade.

- Tudinho. Mais tarde eu te ligo, tá?
- Tá minha vida, te amo.
- Te amo também.

Passou mais doze dias sem vê-la, com uma faixa no pescoço.
Foi estranho beijar de novo.

sábado, 4 de outubro de 2008

Cachoeira

Fazer canções,
num rio frio,
negro em inspiração.

Robusto, forte,
artista de banda marcial,
de todo dia de carnaval,
de todo sul e todo norte.

Engana, brinca,
de todo o tempo
a ginga,
a cachoeira que se abre.

E desce.