sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Terceira Parte do Primeiro Ato

"Virá um tempo em que as vozes do solo e das plantas cantarão apenas lamentos."

-

Seu pai estava imóvel na cama quando ela entrou.
Sentiu um arrepio, uma tontura, e desmaiou.
Quando acordou, viu um Palhaço ao seu lado.
Tinha o cabelo azul, era pequeno e branco como uma nuvem.
Sua voz soou meio tímida e compacta devido, provavelmente, ao tamanho do seu corpo.

- Arnaldo, prazer.

Ana se levantou em um pulo rápido e girou a cabeça tentando encontrar alguma coisa, mas a cama ao seu lado estava vazia e as pessoas estranhas tinham ido embora. Só restou aquela criaturinha em miniatura, olhando fixamente nos seus olhos, com um sorriso inabalável.

- Quer café?
- Não obrigada. Onde está meu pai?
- Foi levado pra Alexandria.
- Como assim 'levado pra Alexandria'? - e levantou-se da cama soerguendo o corpo num único baque;
- Foi o que me disseram. Ele que me deixou aqui pra cuidar de você. - Arnaldo a encarava de baixo pra cima, numa posição pateticamente inferior, mas seu olhar era fixo e determinado;
- E de onde você é, Arnaldo? - um tom de deboche foi percebido;
- Sou um Filho do Sol!

Ana caiu na risada.
Não pôde deixar de caçoar daquela piada.

- E eu sou Deva, o pai de todos os palhaços! - disse ela o encarando com aqueles olhos azul-madre-pérola; vou procurar meu pai, é o melhor que eu faço.

Saiu então em direção à porta.
Baque.
Quando abriu a porta, sentiu como se todas as bestas do mundo inferior estivessem rondando a Floresta da Lembrança. Um odor de enxofre percorreu suas narinas, enquanto um calor imenso tomou conta da sua casa que, com certeza, estava protegida de tudo aquilo por magia.
As árvores estavam morrendo.
O solo estava morrendo.
Os animais estavam morrendo.
O mundo estava morrendo.
Parecia que, em apenas 12 horas, o mundo tinha virado de cabeça pra baixo: seu pai doente, a Floresta perecendo, um palhaço que mais parecia um gnomo lhe fazendo companhia, e só ela pra cuidar de tudo isso.
Fechou a porta.

- Arnaldo, Arnaldo! - se abraçou com ele o mais rápido que pôde: apesar de desconhecido, era sua única companhia; quero sair daqui, quero meu pai! quero minha Floresta de volta!

- Calma, moça, calma! Calma que tudo se resolve!

Começou a chorar num pranto sem fim.
Mas estava decidida.
Iria atrás dos Filhos do Sol!
Lenda ou não, seria sua última chance.
Uma Floresta dizimada, seu pai doente, o mundo se acabando.
'O que está acontecendo?', pensou.
Seu pai lhe disse, uma vez, que os Filhos do Sol já tinham sido reunidos há muito tempo, quando o grande imperador do deserto, Sadhi*, ficou louco pelo poder e começou a destruir todas as vilas do Continente do Fogo para ter mais terras e escravos.
Da sua batalha com os Filhos do Sol, só restou seu túmulo, bem no meio do deserto que recebeu seu nome, o Deserto de Sadhi.

Colocou sua capa invisível, um pouco de pó-de-grifo, algumas maçãs e rosas comestíveis, colocou Arnaldo no braço, e se foi.
Sem rumo, ou direção.
Ou melhor, ela seguia o Sol.

-

Nota:

* Sadhi foi o maior imperador que o mundo já viu. Governou as areias do deserto por quase um século, mas ficou louco pelo poder. Os Filhos do Sol tiveram de intervir em seus planos, pois o mundo estava se acabando. Foi a primeira e única vez que foram vistos sete sóis brilhando no céu.

Nenhum comentário: