segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Última Parte do Primeiro Ato

'Então, ela viu que o céu era sem fim.'

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A Floresta estava úmida e densa. Podia-se ouvir ruídos de galhos sendo quebrados pela própria poeira, e era perceptível só com o coração, tão apertado, de que as árvores estavam pedindo socorro. Sussurros de vozes trazidas pelo vento, cheiros queimados pelo fogo, aquele fogo que incendeia mas não queima, aquele fogo que corrói mas não destrói.
Ana fechou a porta atrás de si, e era como, de novo, se a Floresta estivesse simplesmente morta, sem vida. Havia uma trilha que ela sempre seguia, mas agora está destruída.

- Arnaldo, qual o caminho mais seguro?; ele pára, olha pra ela e responde.
- Nas atuais circunstâncias, nem um caminho é seguro, Donana!; ela ficou meio apreensiva, olhou ao redor, e percebeu uma fresta de sol que descia pela copa das folhas dos gigantescos pinheiros e sequóias.
- É por ali!; e saiu com Arnaldo - agora no chão por conta do peso - em seu encalço.

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Do outro lado da Floresta, ela se preparava.
Pôs seu chapéu cor-de-rosa, sua camisa florida e aquela saia vermelho-marrom, de que tanto gostava. 'É daqui a pouco', pensou.
Passou seu batom, também vermelho, e olhou pra fora daquela janela de madeira bem polida, que tinha antes sido colocada na sala de visitas daquela sequóia-rúbea.
Fazia tempo que não era chamada. A última vez foi há mais de mil anos, quando aquele rei louco da areia decidiu querer dominar o mundo. Mas está feliz, acima de tudo. Vai rever seus irmãos em breve, tem certeza. A única que sabe, de fato, quem é e porque está ali é ela. Colocada pelo próprio Deva pra acordar os 'outros'. Ela coloca sua bolsa de flores, olha uma última vez pelo espelho, e sai. Alguém a espera.

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Andaram cerca de uma hora, e ela percebia que ainda faltava muito pra chegar ao fim do caminho. Parou, então, para descansar.

- Arnaldo?; olhou para ele, encostado numa árvore.
- Oi, Donana!
- De onde você veio mesmo?
- Alexandria, a cidade dos Palhaços!; os olhos dele brilharam com aquela resposta.
- E lá é bom pra se viver?
- Ah, Donana, é bom sim! Só que o povo é muito materialista, sabe? - ficou meio pensativo com essa resposta - Assim, se importam muito com as aparências, com a beleza física das coisas, e se esquecem que, às vezes, a beleza real de uma pessoa está num gesto, num olhar, numa atitude. E isso me preocupa, porque eu já vi muitas pessoas perdendo outras por brincadeira, por terem falado algo ou cobiçado uma simples roupa numa daquelas lojas. A real essência das coisas é a alma, e é isso que eu acho.

Ana pára e o observa.

- Você tem irmãos, Arnaldo?
- Tenho sim, Donana, tenho sim!; se levantou de um pulo só e começou a gesticular no ar - Sou irmão dos 7 Palhaços que Deva fez! Ele me deixou aqui pra cuidar pra que o mundo não ficasse na mesmisse e pra que, quando fosse necessário, eu fosse atrás deles pra o mundo voltar a ser melhor! - ah, e abriu um sorriso gigantesco quando disse isso.

A menina duvidou que alguém pudesse ser tão sincero consigo mesmo, porque aquele brilho nos olhos era, sim, totalmente sincero.

- E a senhora, Donana, tem irmãos?
- Senhora não que eu não sou velha!
- Ah, tá, desculpa. - e se recolheu na árvore em que havia se sentado novamente e começou a comer.

- As pessoas se esquecem de que as outras também têm sentimentos.

Ana franziu o cenho e olhou para ele com uma cara interrogativa.

- É, é isso mesmo. Em Alexandria, o egoísmo das pessoas já superou tanto o amor que uma sente pela outra que agora é cada um por si, cada um falando mais alto que o outro, cada um que não respeite a opinião do outro. Os comerciantes aumentam os preços dia após dia, as famílias vão se desestruturando, os governantes são corruptos e roubam...

Suspira.

- Desculpa, não foi minha intenção te machucar; o abraçou forte, um abraço daqueles, que valem um 'eu gosto muito de você, seu cabra!'.

Então, ouviram um estalo de galhos.
Ana se levantou e tirou logo sua capa invisível enquanto Arnaldo apontava sua mão pra todos os lados, como se estivesse preparando a ação pra alguma coisa.
Olhos vermelhos de monte começaram a aparecer na penumbra por detrás das árvores. Um odor de enxofre novamente foi sentido. Não esperou mais nada, colocou Arnaldo nos braços e correu sem rumo.

- Me solta, me solta, me solta que eu acabo com eles!
- Deeeeixa de falar besteira, são muitos!; adrenalina à mil, Ana começou a entrar em cada buraco que nunca havia entrado, enquanto sua respiração começava a ofegar. Até que uma das criaturas pulou em cima dela!
Aqueles olhos entravam na alma de quem os olhasse. Eram vermelhos como o fogo, e aquela mandíbula tentando arrancar algum pedaço de carne agora doía entre seus braços.
Foi aí que uma luz forte foi vista e ela sentiu não só a criatura que a encurralva, mas todas as outras sumindo frente à luminosidade. Desmaiou.

*

O cheiro de rosas era perceptível, estava meio cansada, e sentia alguém segurando seu braço. Ouviu a voz de Arnaldo:

- Ela está acordando!

Quando abriu os olhos, viu aquela Palhaça com o chapéu rosa segurando seu braço que, agora, estava se regenerando. Estava num vasto campo, e a copa das árvores da Floresta da Lembrança podiam ser vistas a longe. Ouviu a Palhaça dizer:

- Sou Amália, moça bonita, e você deve ser Ana!

Percebeu, antes de mais nada, um Sol dourado pintado em seu rosto, e um cordão com o mesmo sinal em seu pescoço. Então, ela olhou nos olhos de quem a ajudava, e eles tinham a cor da esperança.

Fim do Primeiro Ato