quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Ana e o Mar - Segunda Parte do Segundo Ato

'Nessa rua, nessa rua tem um bosque que se chama, que se chama solidão.
Dentro dele, dentro dele mora um anjo que roubou, que roubou meu coração.'

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- O que será que tem nesse Teatro Mágico?; perguntou Amália, levantando a sobrancelha.
- Bah, só vamos saber vendo, não é mesmo?; respondeu Ana, com uma curiosidade nos olhos.
- É verdade, mas, antes disso, precisamos conseguir uma estalagem para ficarmos durante o tempo que formos passar por aqui, precisamos comprar roupas novas porque essas estão um desastre e, além de tudo, precisamos começar a procurar por seu pai.
- É mesmo, Donana! A gente num pode perder tempo não!; falou Arnaldo enquanto a olhava de baixo para cima.
- Tá bom, tá bom, já calei.

Foram, então, adentrando mais a cidade.

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Sobre o Mundo [3]

Alexandria, pelo que eles viam, era uma cidade realmente grande. Com cerca de dois milhões de habitantes, merece o nome de 'capital do Mundo'. O comércio é baseado numa forma mais capitalista de ser, onde a moeda local, o Dracma, compra quase tudo o que se pode vender.
As ruas são algumas estreitas, outras mais largas, basicamente como a Paris do Imperador Napoleão III, que transformou a capital francesa numa obra de arte arquitetônica. Com prefeitura fixa, porém sem um governante, de fato, a cidade sobrevive da exportação de madeira e de escolas de mágika. Algumas lojas mais famosas, que vendem aparatos mágicos, movimentam, também, uma enorme quantia de dinheiro. Os bares e tavernas só abrem à noite, e são o ponto de encontro de aventureiros, guerreiros, viajantes e bardos, que passam a noite cantando ou contando estórias para ganhar algum trocado. A cidade é cercada por uma pequena floresta que, por não ter uma importância muito grande para as pessoas da região, recebeu o nome de Floresta Sem-Importância. A oeste, temos o Mar.
Contam os bardos e trovadores que, em algum momento do início da criação, um grande mago soergueu grande parte de Alexandria e a enfeitiçou de forma a ficar flutuando pelo Mundo. Essa cratera de aproximadamente 90 quilômetros de diâmetro é onde hoje funcionam as minas de uma raça conhecida como Anões.

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- Olha gente, olha!; ressaltou Ana, apontando para alguns balões que um humando vestido de palhaço estava desfilando na rua. Amália só deu um costumeiro sorriso, enquanto Arnaldo olhava admirado, como uma criança que acaba de ganhar um pacote de algodão doce.
- Liiindo! Eu quero um desses pra mim!; Arnaldo apontou pra um balão vermelho, que parecia seu nariz.

Ana remontou ao passado.

'- Papai, papai! Eu quero um daqueles!

O pai dela olhou para aquele Palhaço mágico vendedor de balões. Era costumeira sua presença ali, e ele era um dos poucos Palhaços que se relacionavam com os humanos sem ter medo ou receio pois, naquela época, Palhaços e humanos viviam em guerra para ver quem governaria Alexandria.

- Ah, minha filha, agora não tenho dinheiro, mas assim que o tiver eu compro um pra você, tá certo?

Ana ficou cabisbaixa e murmurou um 'Tá certo, papai'. Ela devia ter uns 6 anos na época.
As coisas estavam difíceis. Tentar conseguir emprego era cada vez mais constrangedor, pois a escassez do dinheiro estava enorme. As pessoas estavam, literalmente, matando pra conseguir um pouco de comida ou alimento, porque as florestas estavam todas contaminadas com uma praga que até hoje não se sabe o que foi. Alguns dizem que foi castigo de Deva pela ambição dos Palhaços e dos humanos pela cidade, outros dizem que foi simplesmente um 'mal entendido' com a Natureza.
Continuaram andando, era dia de receber o dinheiro ofertado pelo governo. Ana odiava a idéia de receber algo como uma esmola, mas era o jeito.
A fila daquele dia estava enorme, cada um com seu papel-recibo para comprovar o recebimento da oferta. Ela lembra, pelo seu marca-tempo, que passaram mais de duas voltas no aparato [o equivalente a duas horas no mundo real], e eles ainda estavam lá.
Foi então que começou uma confusão na fila mais da frente porque uma das pessoas queria furar a fila. Pelo menos foi isso que ela pôde entender do que aconteceu. Ouviu um deles gritar 'você pensa que só porque tá com essa putinha do seu lado você tem o direito de furar a fila?'. A 'putinha' era provavelmente a filha adotiva daquele senhor de aproximadamente 70 anos de idade, todo mal lavado, sujo e aparentemente faminto. Os olhos de Ana ficaram lacrimejados com aquilo. Foi então que, num piscar de olhos, lá ia seu pai tomar satisfação com aquele monstro gordo que havia ofendido o velho. Ele ficou imaginando se fosse com a filha dele aquele insulto.

- Quem você pensa que é, rapaz, pra tratar esse senhor assim?
- Sou dois de você, seu sarnento! - e desferiu um soco na boca do pai de Ana. Ela correu chorando para ajudá-lo mas ele, com um grito e um gesto, disse que ela se afastasse.
Nesse dia, ela lembra que foi com o pai para o hospital porque a guarda demorou a chegar.
Seu pai passou cerca de dois dias de cama. Não recebeu dinheiro nessa temporada, e eles, mais uma vez, passaram o mês se alimentando com pétalas e néctar. Mas, com o único trocado que ele tinha quando saiu do hospital, ele comprou um balão vermelho para a filha.'

- Algum problema, Donana?
- Não, Arnaldo, nenhum - replicou a menina balançando a cabeça como quem sai de um transe.
- Então, podemos ir, não? - quando Ana viu, Arnaldo já estava com o balão vermelho em mãos, e ele e Amália estavam um pouco mais à frente meio que esperando-a para continuar a caminhar.

Caminharam um certo tempo, compraram suas roupas e comeram.Acharam uma estalagem barata e confortável, tudo pago por Amália. Era cerca de meio dia quando tomaram um banho de verdade e vestiram suas roupas novas.

- A comida está tão boa! - disse Arnaldo em meio ao almoço, colocando uma colher atrás da outra sem mastigar direito.
- Está, sim, Arnaldo, mas vá com calma se não você vai terminar por colocar tudo isso pra fora!

O carinho que Amália tinha por aqueles dois era carinho de mãe mesmo. Sempre se preocupando.

- E Donana, vai comer não?
- Ah, agora não, não estou com tanta fome assim - disse Ana, remexendo os legumes no prato. Posso me retirar agora?
- Claro, à vontade; Amália respondeu ainda com um sorriso no rosto.

*

Passaram a tarde tirando uma cesta. Há três dias não dormiam direito. Quando se levantaram, já era tardezinha, quase noite. Ana foi a primeira a se preparar para ver o Teatro Mágico no bar mais comentado da cidade, A Taverna.
Andaram pela cidade, que ganhava outra cara à noite. Parecia que a tampa de todos os boeiros eram abertas e que todos os bebuns existentes no mundo tomavam conta do espaço urbano.
De longe, já se via a fila pra entrar naquele cubículo, que tinha mesas de madeira mal talhada e um chão sujo, uma garçoente gorda e mal cheirosa e um minipalco para apresentações. O ambiente era, de fato, bem rústico, com não mais de 80 metros quadrados. No balcão, vinhos, cervejas e hidromel faziam parte do cardápio de bebidas, enquanto de comida, havia apenas algumas flores selvagens guizadas. Enfim, conseguiram um local pra sentar-se.

- O que vão querer? - perguntou a garçonete.
- Água e só, por favor - disse Amália.

Estava uma enorme gritaria, como se o mundo estivesse perto de acabar. Foi quando subiu no palco uma espécie de Palhaço-Bardo com um violão preto e anunciou:

- Senhooooras e senhoooores! Hoje, e somente hoje, a poesia prevalece!

Ana olhou com os olhos brilhando toda aquela mágica envolvendo o ar, enquanto um pinguim entrava no palco com uma sanfona e, do nada, saem uma boneca de pano e um Palhaço descendo de um trapézio que nem Amália viu de onde saiu.

Então, aquela trupe começou a realmente fazer um show, enquanto conseguia acalmar, de alguma forma, toda aquela angústia que repreendia Ana. Arnaldo olhava encantado, sem saber se aplaudia de pé ou se mantia o máximo de sua concentração naquela apresentação. Foi como se eles tivessem sido transportados pra outro mundo, onde só se viam flores e criaturas mágicas.
Então, Ana viu que Amália estava apreensiva. Olhando fixamente para um Palhaço.
Ele usava um chapéu jeans e uma camisa azul-branco listrada por cima de uma camiseta azul clara e uma calça vermelha bem coronha. Parecia um boneco com seus traços de maquiagem, e quando ele colocou os olhos sobre Amália, foi como se o tempo, naquele momento, parasse, e um calor enorme tomou conta de toda a sala.

Um comentário:

Amália disse...

"O carinho que Amália tinha por aqueles dois era carinho de mãe mesmo. Sempre se preocupando."

Amorosa, do jeitinho que eu imaginei x)

*-*